Perfil sociodemográfico e citológico de mulheres em investigação de neoplasia cérvico-uterina em um serviço secundário
Sociodemographic and cytological profile of women undergoing investigation of uterine cervical neoplasms in a secondary service
Perfil sociodemográfico y citológico de mujeres sometidas a estudio de neoplasias del cuello uterino em um servicio secundario
Jorge Luís Tavares de Oliveira - Enfermeiro. Doutor em Saúde Pública. Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. ORCID: 0000-0002-8212-4167
Gisele O’dwyer - Professora. Doutora em Saúde Pública. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. ORCID: 0000-0003-0222-1205
Nádia Cristina Pinheiro Rodrigues - Professora. Doutora em Saúde Coletiva. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. ORCID: 0000-0002-2613-5283
RESUMO
Objetivo: analisar o perfil sociodemográfico e comparar as diferenças das características de mulheres com alterações citológicas de alto grau em um serviço da atenção secundária. Método: estudo transversal retrospectivo de 2017 a 2021 realizado em 160 prontuários (CAAE 51800621.3.0000.5240). Resultados: predominaram mulheres com média de idade 40,7 anos, escolaridade abaixo do ensino médio, tiveram um a três filhos, não utilizavam preservativos e anticoncepcionais, não tabagistas e com alterações citopatológicas alto grau. As características com maiores percentuais para lesões citopatológicas de alto grau foram mulheres com quatro ou mais gestações, idade do parto menor ou igual a 18 anos, coitarca menor ou igual a 15 anos e tabagistas. Conclusão: serviços da rede de atenção, especialmente da atenção primária à saúde, devem capacitar permanentemente os profissionais visando cumprimento de fluxos assistenciais preconizadas pelas recomendações das diretrizes brasileiras de rastreamento da neoplasia cérvico-uterina atentando ao perfil encontrado de mulheres encaminhadas a atenção secundária.
Descritores: Neoplasias do colo do útero; Programas de rastreamento; Continuidade da assistência ao paciente; Saúde da mulher.
ABSTRACT
Objective: analyzes the sociodemographic profile and compare the differences in the characteristics of women with high-grade cytological alterations in a secondary care service. Method: retrospective cross-sectional study from 2017 to 2021 carried out in 160 medical records (CAAE 51800621.3.0000.5240). Results: women predominated with a mean age of 40.7 years, education below high school, had one to three children, did not use condoms and contraceptives, nonsmokers and with high-grade cytopathological alterations. The characteristics with the highest percentages for high-grade cytopathological lesions were women with four or more pregnancies, age at birth less than or equal to 18 years, coitarche less than or equal to 15 years, and smokers. Conclusion: services of the care network, especially primary health care, should permanently train professionals in order to comply with the care flows recommended by the recommendations of the Brazilian guidelines for screening cervical uterine neoplasia, paying attention to the profile found of women referred to secondary care.
Keywords: Uterine cervical neoplasms; Mass screening; Continuity of patient care; Women’s health.
RESUMEN
Objetivo: analizar el perfil sociodemográfico y comparar las diferencias en las características de mujeres con alteraciones citológicas de alto grado en un servicio de segundo nivel de atención. Método: estudio transversal retrospectivo de 2017 a 2021 realizado en 160 historias clínicas (CAAE 51800621.3.0000.5240). Resultados: predominaron las mujeres con edad media de 40,7 años, escolaridad inferior a la secundaria, con uno a tres hijos, no usuarias de preservativo y anticonceptivos, no fumadoras y con alteraciones citopatológicas de alto grado. Las características con mayor porcentaje de lesiones citopatológicas de alto grado fueron mujeres con cuatro o más embarazos, edad al nacer menor o igual a 18 años, coitarquia menor o igual a 15 años y fumadoras. Conclusión: servicios de la red de atención, especialmente la atención primaria a la salud, deben capacitar permanentemente a los profesionales para cumplir con los flujos de atención recomendados por las recomendaciones de las directrices brasileñas para el tamizaje de la neoplasia cérvico-uterina, prestando atención al perfil encontrado de las mujeres referidas atención secundaria.
Palabras claves: Neoplasias del cuello uterino; Tamizaje masivo; Continuidad de la atención al paciente; Salud de la mujer.
Recebido: 15/07/2023
Aprovado: 20/08/2023
INTRODUÇÃO
A disparidade mundial das taxas de incidência e de mortalidade pelo Câncer de Colo de Útero (CCU) representa relevante problema de saúde pública e indicador da desigualdade do acesso aos serviços de saúde em países menos desenvolvidos1-3. No Brasil, cerca de 70% da população é dependente do Sistema Único de Saúde (SUS), apresentando dificuldades de acesso para o diagnóstico e tratamento do câncer nos serviços públicos de saúde3.
São esperados 704 mil novos casos de câncer no Brasil por cada ano do triênio 2023-2025, destacando as regiões Sul e Sudeste que concentrarão 70% das neoplasias no país. Em 2023, espera-se 17.010 casos novos para CCU, representando uma taxa ajustada de incidência de 13,25/100 mil mulheres. O CCU encontra-se na terceira posição de incidência de localização primária e a quarta para mortalidade por câncer em mulheres no país, desconsiderando os tumores de pele não melanoma4. Em 2020, a taxa ajustada de mortalidade para essa neoplasia foi de 4,60/100 mil mulheres com discrepância entre as diferentes regiões do país5. Para o CCU, os resultados apontaram que as maiores taxas de mortalidade predominaram nas capitais da região Norte e com menor renda3.
O CCU possui fatores predisponentes para o desenvolvimento das lesões precursoras, sendo a infecção persistente pelo HPV (Papilomavírus Humano) condição necessária para a progressão, mas não o suficiente para a ocorrência da doença. Dentre os fatores que corroboram para a ocorrência do CCU tem-se a idade, multiplicidade de parceiros sexuais, relações sexuais desprotegidas, sexarca precoce, uso prolongado de anticoncepcionais orais, tabagismo, paridade elevada e baixa condição socioeconômica6,7.
Há fatores condicionantes no âmbito dos sistemas de saúde que contribuem na ocorrência dessa neoplasia, como os programas de rastreamento e de diagnóstico precoce ineficazes, necessidade de ampliação de estratégias preventivas baseadas em intervenções comunitárias com práticas educativas às mulheres sobre os fatores de risco relacionados as condições de vida, aos comportamentos e práticas sexuais1,8.
No Brasil, o rastreamento do CCU é realizado pela colpocitologia sendo a principal estratégia de prevenção secundária adotada no SUS. É indicado que mulheres que já iniciaram a vida sexual, especialmente aquelas entre 25 a 64 anos de idade, realizem dois exames colpocitológicos com intervalo anual por dois anos consecutivos, passando a trienal, se ambos resultados forem negativos9,10. Em países de alta renda, prevalece a testagem do HPV combinada à colpocitologia1,2.
O CCU possui lenta progressão e se detectada precocemente, possui elevada taxa de cura. As alterações celulares consideradas precursoras podem ser descobertas através do exame colpocitológico periódico3,9,10. Tendo em vista que a ocorrência do CCU e sua mortalidade são considerados condições evitáveis, a acessibilidade aos serviços de saúde com fluxo assistencial adequado para o rastreamento desse câncer e suas lesões precursoras são fundamentais para redução de sua mortalidade3.
As ações de controle do CCU no SUS são organizadas em níveis hierárquicos de atenção à saúde de forma articulada em uma linha de cuidado compondo-se em uma rede integrada com perspectiva de integralidade, sendo esses: primário, secundário e terciário9,10. Nesse contexto, a prevenção e controle dessa neoplasia é norteado por um fluxo assistencial, por protocolos e diretrizes clínicas estabelecidos diante do CCU e/ou lesões celulares3,11.
No intuito de conhecer as características e as respectivas alterações colpocitológicas que induziram os profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) a encaminhar as mulheres para um serviço da atenção secundária e compreender o fluxo assistencial em um município mineiro, o estudo propõe analisar o perfil sociodemográfico e comparar as diferenças das características de mulheres com alterações colpocitológicas de alto grau em um serviço de atenção secundária.
MÉTODO
Trata-se de um estudo transversal retrospectivo12 realizado em um serviço da atenção secundária (ambulatório de Ginecologia) para rastreamento, diagnóstico e seguimento de CCU no Centro Estadual de Atenção Especializada (CEAE)13,14 no município de Juiz de Fora/Minas Gerais/Brasil no período de 2017 a 2021.
O CEAE/Juiz de Fora é um serviço ambulatorial de referência regional de 26 municípios mineiros, inclusive o município de Juiz de Fora, garantindo assistência integral às mulheres assistidas desde ações educativas, preventivas, diagnósticas e terapêuticas ao CCU. Para iniciar tratamento no CEAE, é necessário atender aos critérios instituídos pelo programa da Secretaria Estadual de Saúde (SES/MG) com encaminhamentos realizados pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS).
Os critérios definidos para referenciar as mulheres da APS ao ambulatório de Ginecologia foram as seguintes alterações colpocitológicas: atipias escamosas celulares de significado indeterminado não neoplásicas (ASC-US) de repetição ou quando não se pode excluir lesão de alto grau (ASC-H); lesão intraepitelial de baixo grau (LSIL) de repetição; lesão intraepitelial de alto grau (HSIL); atipias celulares glandulares não neoplásicas ou quando não se pode excluir lesão de alto grau (AGC); atipias celulares de origem indefinida quando não se pode excluir lesão intraepitelial de alto grau (AOI); lesão intraepitelial de alto grau (HSIL) não podendo excluir micro invasão; carcinoma epidermoide invasor; adenocarcinoma in situ (AIS) ou invasor; mulheres imunossuprimidas por Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e transplantadas; com doença autoimunes ou em uso de drogas imunossupressoras com lesão intraepitelial de baixo grau (LSIL). Todas as mulheres selecionadas realizaram colposcopia e/ou biópsia do colo do útero para confirmação ou descarte das lesões precursoras ou CCU. Destaca-se que as duas categorias de lesões citopatológicas de baixo grau configuram-se como de repetição, justificando o encaminhamento.
Adotou-se como critérios de inclusão as mulheres na faixa etária de 25 a 64 anos9,10, cadastradas e encaminhadas pelas UBS de Juiz de Fora ao serviço secundário com resultados de colpocitologias sugestivos de lesões precursoras ou CCU. As mulheres que compuseram a amostra vieram de 44 UBS e na atenção secundária obrigatoriamente realizaram colposcopias, biópsias e estudo histopatológico.
O tamanho amostral considerou a prevalência global de infecção pelo HPV de 12,6% em Juiz de Fora (2015)15 com 222 mulheres. Foram selecionadas para esse estudo 160 prontuários devido a completude dos dados nos prontuários, estarem na faixa etária entre 25 a 64 anos e cadastradas nas UBS de Juiz de Fora. Excluiu-se 62 mulheres que não atenderam aos critérios de inclusão.
A coleta de dados ocorreu de novembro de 2021 a julho 2022 e foi orientada por um instrumento de coleta de dados (formulário semiestruturado) dividido em três dimensões (Dimensão Sociodemográfica; Dimensão Sexual e Reprodutiva; e Dimensão de Atenção à Saúde). A consolidação dos dados foi realizada no programa Redcap (Research Electronic Data Capture)® e para a análise dos dados utilizou-se o software R, versão 4.3.0. Realizou-se análise descritiva das variáveis em tabelas conforme as características pertinentes às dimensões previstas e análise descritiva das variáveis (médias, mediana, desvio padrão, frequências absolutas e relativas).
A variável desfecho foi alteração citopatológica de alto grau. Foram consideradas alterações de alto grau as seguintes lesões: ASC-H, AOI, HSIL, HSIL não pode excluir microinvasão, carcinoma epidermoide invasor, adenocarcinoma in situ e AGC. Foram consideradas alterações de baixo grau as lesões: LSIL e ASC-US.
As variáveis estudadas apresentaram completude superior a 90% na análise dos dados, sendo calculadas as frequências absolutas e porcentagens para as variáveis qualitativas e médias, medianas e desvios-padrão para as variáveis quantitativas distribuídas de acordo com as dimensões de análise: 1) Dimensão sociodemográfica foram descritas a idade (categorizada em faixa etária <30, 30-39, 40-49, 50-59, ≥60), situação conjugal (casada, não casada), raça/cor (branca, não branca), nível de escolaridade (fundamental e inferior, médio e superior); 2) Dimensão sexual e reprodutiva incluiu o uso (sim, não), tipo de anticoncepcional (oral, injetável, não faz uso), uso de métodos de barreira (sim, não), número de gestações (0-3, ≥4), número de abortos (0-3, ≥4), número de partos (0-3, ≥4), número de filhos (0, 1-3, ≥4), idade primeiro parto (≤18, >18), menarca (≤11,>11) e coitarca (≤15,>15) e 3) Dimensão de atenção à saúde relacionada aos hábitos de vida e as alterações colpocitológicas: tabagismo e lesões citológicas. Foi investigada a presença de associação entre as lesões colpocitológicas de alto grau com as variáveis sociodemográficas, sexuais, reprodutivas e de hábitos de vida (tabagismo) utilizando os testes qui-quadrado ou exato de Fisher, considerando nível de significância de 5%.
Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em 19/12/2022 (CAAE 51800621.3.0000.5240) e atendeu as recomendações éticas da Resolução 466/201216.
RESULTADOS
Quanto ao perfil sociodemográfico apresentado na Tabela 1, a idade média foi de 40,7 anos (desvio padrão 9,35) e mediana 38,5 anos. Houve predominância na faixa etária entre 30 a 39 anos (48,1%), grau de escolaridade menor ou igual ao ensino fundamental (61,2%). Brancas e não brancas (pretas e pardas), assim como as casadas e não casadas, apresentaram percentuais semelhantes de mulheres encaminhadas para colpocitologia.
Tabela 1: Distribuição das características sociodemográficas das mulheres atendidas no ambulatório CEAE em Juiz de Fora/Minas Gerais/Brasil, 2017 a 2021.
Observa-se na Tabela 2 as frequências absolutas e percentuais das variáveis da dimensão sexual e reprodutiva, com predominância de mulheres que não faziam uso de preservativos nas relações sexuais (82,1%), uso de anticoncepcional oral (27,5%), número de gestações menor que quatro (75,2%), números de partos menor que quatro (81,1%), número de abortos foram menor que quatro (98,70%), mulheres que tiveram entre um a três filhos (68,9%), com idade da menarca maior que 11 anos (78,3%) e idade da coitarca maior que 15 anos (63,6%). Foram semelhantes os percentuais de mulheres com idade no primeiro parto maior e menor/igual a 18 anos, e o uso e não uso de anticoncepcional.
Tabela 2: Distribuição das características sexuais e reprodutivas das mulheres atendidas no ambulatório CEAE em Juiz de Fora/Minas Gerais/Brasil, 2017 a 2021.
A maioria das mulheres eram não tabagistas (68,2%). Quanto às lesões citológicas motivos para os encaminhamentos da APS ao ambulatório de Ginecologia, prevaleceram os laudos citopatológicos que constava células escamosas atípicas de significado indeterminado não podendo excluir lesão intraepitelial de alto grau (ASC-H) e lesão intraepitelial escamosa de alto grau (HSIL), ambas com 28,8%, totalizando 57,6% dos encaminhamentos (Tabela 3).
Tabela 3: Distribuição da alteração colpocitológica e tabagismo nas mulheres atendidas no ambulatório CEAE em Juiz de Fora/Minas Gerais/Brasil, 2017 a 2021.
ASC-H – Células escamosas atípicas de significado indeterminado não pode excluir lesão intraepitelial de alto grau; ASC-US – Células escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não neoplásicas; AOI – Células atípicas de origem indefinida (possivelmente não neoplásica ou quando não se pode afastar lesão de alto grau); LSIL – Lesão intraepitelial de baixo grau compreendendo efeito citopático pelo HPV; HSIL – Lesão intraepitelial de alto grau; AIS – Adenocarcinoma in situ; AGC – Células glandulares atípicas de significado indeterminado possivelmente não neoplásicas ou quando não se pode excluir lesão intraepitelial de alto grau.
Fonte: Autores
Comparando-se as características das mulheres em relação ao grau de alteração citopatológica, observou-se que mulheres com quatro ou mais gestações apresentaram maiores percentuais de alterações citopatológicas de alto grau (92,3% versus 72,0%), mulheres com idade do parto menor ou igual a 18 anos também apresentaram maior percentual de alterações citopatológicas de alto grau (91,2% versus 67,2%), aquelas com idade da primeira relação sexual menor ou igual a 15 anos (88,5 versus 72,5%) e as mulheres tabagistas apresentaram maior percentual de alterações citopatológicas de alto grau (92,0% versus 71,0%), resultando em significância estatística (p<0,05) (Tabela 4).
Tabela 4: Relação entre as características sociodemográficas, sexual/reprodutivas e hábitos de vida com o grau de alteração citopatológica em Juiz de Fora/Minas Gerais/Brasil, 2017 a 2021.
DISCUSSÃO
A evolução do CCU depende de condições sociais, econômicas, ambientais e políticas, considerando as características biológicas e comportamentais das mulheres que desenvolveram lesões precursoras ou o câncer propriamente dito. Ao identificar tais aspectos é possível elaborar estratégias que alcançarão as mulheres dentro desse perfil e assim elaborar medidas preventivas, efetivar ações diagnósticas e terapêuticas efetivas17.
Ressalta-se que o CCU é pouco observado em mulheres até os 30 anos, sendo mais incidente na faixa etária 45 a 50 anos, indicando que a idade é um fator de risco a ser considerado para essa neoplasia17. Neste estudo, observamos que prevaleceu mulheres entre 30 a 39 anos (48,1%) encaminhadas ao serviço ambulatorial para investigação de lesões celulares e/ou neoplasia cervical uterina, sendo que 11,44% das mulheres encaminhadas ao serviço de atenção secundária não atendiam às recomendações brasileiras para rastreamento para CCU referente a idade (menor de 25 anos e maior que 64 anos), porém havia alterações citopatológicas e sintomatologia que justificava o encaminhamento para investigação diagnóstica no serviço secundário7,9.
A predominância de mulheres de raça branca com alterações colpocitológicas de alto grau (78,1%) converge com os resultados de alguns estudos18,19. Neste estudo, o percentual de alterações colpocitológicas de acordo com a raça/cor se aproxima dos achados no estudo realizado com dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 (PNS) apontando prevalência de mulheres de raça/cor branca de 82,6% (IC: 95% 81,4 – 83,9). Observou-se nesse estudo o perfil das mulheres que realizaram colpocitologia nas capitais brasileiras: faixa etária entre 35 a 54 anos, com maior escolaridade e brancas17. Neste estudo, o nível de escolaridade predominante foi mulheres com ensino fundamental e inferior (61,2%).
É citado em um estudo de Campinas que a situação conjugal é uma variável associada à realização da citologia, onde mulheres casadas ou com parceiros apresentaram maior prevalência na realização do exame citopatológico em comparação aquelas que não possuíam parceiros. Esses resultados indicam que mulheres que realizam o exame mantem vida sexualmente ativa, e assim, possuem maior preocupação com sua saúde adotando hábitos e comportamentos preventivos20. Neste estudo o percentual de mulheres que realizou o exame citopatológico foi semelhante entre casadas e não casadas.
Não encontramos diferença entre o percentual de mulheres com alteração citopatológica de alto grau entre as mulheres que faziam e não faziam uso de anticoncepcional. Observou-se em outros estudos, que o uso prolongado de contraceptivos orais é considerado fator de risco para CCU e na ocorrência das lesões cervicais, pois contribui para o desenvolvimento de lesões de alto grau em mulheres com infecção persistente pelo HPV21-23.
Em um estudo transversal realizado em Juiz de Fora22, identificou-se que as participantes ao fazer uso abusivo do álcool tinham 9% de chances a mais de apresentar exame citopatológico alterado do que as mulheres que não consumiam álcool. O consumo de bebida alcóolica reduz o discernimento acerca dos riscos associados aos comportamentos sexuais, como o não uso de preservativos nas relações sexuais22. Para esse estudo, encontrou-se que a maioria das participantes não fazia uso de preservativos nas relações sexuais (82,1%), reforçando os dados encontrados na literatura22,23 e não foram encontradas informações sobre consumo de bebidas alcoólicas nos prontuários.
Um motivo plausível para a não utilização dos preservativos das mulheres no estudo seria a situação conjugal, pois cerca de metade das mulheres encontravam-se vivendo com companheiros (casada e união estável). Pessoas que mantêm união conjugal e/ou relacionamento, em geral, não possuem autopercepção de vulnerabilidade para aquisição de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), e consequentemente, não adotam comportamentos preventivos com os companheiros, como a utilização de preservativos22,23.
Em estudo realizado em São Paulo visando descrever as frequências de IST, os fatores associados e as orientações recebidas dos profissionais de saúde, constatou-se que 77,8% das mulheres iniciaram a vida sexual após os 15 anos e 62,4% não usaram preservativo na primeira relação sexual23. Deparamos com dados convergentes no presente estudo, onde a coitarca predominou acima de 15 anos (63,6%).
Avaliaram-se os fatores de risco em um estudo revisional, que incluiu a idade, número de parceiros sexuais, idade de início da vida sexual, nível de renda e tabagismo. A única relação que permaneceu consistente e significativa entre os estudos revisados foi a relação entre a idade e a prevalência de HPV. Vários estudos descobriram que a prevalência de HPV era mais alta em mulheres mais jovens, com taxas de prevalência diminuindo com o aumento da idade. No mesmo estudo, o tabagismo, foi considerado fator de associação ao desenvolvimento de câncer cervical, porém a associação ao HPV mostrou-se significativa em apenas dois estudos incluídos nessa revisão24.
Nesse estudo, a diferença entre os percentuais de alteração citopatológica de alto grau foi superior em tabagistas (92,0% versus 71,0), sendo a diferença estatística considerada significante (p-valor <0,003). Em outro estudo realizado em Juiz de Fora, as mulheres que faziam uso de cigarros (tabagistas) apresentaram chances 14% maior de ter exames citopatológicos com alterações do que aquelas que não eram tabagistas22. Uma das justificativas é que as substâncias químicas contidas nos cigarros podem reduzir a resposta imunológica contra o HPV e favorecer a ocorrência de alterações genéticas nas células infectadas pelo HPV favorecendo a ocorrência de alterações celulares22.
Neste estudo, mulheres com maior número de gestações, com idade do primeiro parto inferior a 19 anos e idade da primeira relação sexual menor ou igual a 15 anos tiveram maiores percentuais de alteração citopatológica de alto grau. Sabe-se que quanto mais cedo o início da vida sexual das mulheres, maior o grau de exposição aos agentes causadores de IST, e assim, as idades da primeira menstruação e da primeira relação sexual são consideradas fatores relevantes para a ocorrência das alterações citopatológicas25.
Identificou-se neste estudo que a menarca e a coitarca predominaram acima dos 11 anos (78,3%) e 15 anos (63,6%), respectivamente. Estudo realizado no Sul do país apresenta dados semelhantes com os encontrados nessa pesquisa, pois a maioria das mulheres tiveram a menarca entre 12 a 14 anos e predomínio da iniciação sexual acima de 16 anos.
O perfil obstétrico das mulheres deste estudo prevalece a maioria que tiveram entre um a três filhos (68,9%). Comparando os percentuais de alteração citopatológica de alto grau de acordo com o número de filhos, observamos maior percentual em mulheres com mais de três filhos (p-valor < 0,02). A multiparidade é considerada fator de risco para o CCU, pois há associação significativa da mulher que tenha quatro filhos ou mais ter sobrecarga em decorrência das responsabilidades pelos cuidados à família, podendo assim, influenciar diretamente no acesso delas aos serviços de saúde para adoção de medidas preventivas em relação a sua saúde sexual e reprodutiva25.
As diretrizes brasileiras para rastreamento do CCU propõem que haja padronização nas condutas e critérios clínicos a serem adotados frente as alterações citológicas, visando uniformidade, comunicação e organização entre os serviços de saúde que compõe a Rede de Atenção à Saúde (RAS)9.
Entende-se como RAS, arranjos organizados de ações e serviços de saúde que estão articulados e integrados entre os diferentes níveis de atenção, no intuito de garantia da integralidade do cuidado. A APS é o nível inicial entre os demais níveis, sendo a principal referência de cuidados básicos prestados à população com ações voltadas à promoção, de proteção à saúde e prevenção de agravos. Em relação ao CCU, o nível primário assume práticas educativas, vacinação de grupos indicados e rastreamento (detecção e diagnóstico precoce) através da realização da colpocitologia para prevenção de CCU e lesões precursoras9.
Ao detectar alterações sugestivas de lesões precursoras e/ou CCU nos exames colpocitológicos, as mulheres são encaminhadas ao nível secundário que deverá confirmar e/ou descartar o diagnóstico inicial, realizar o tratamento ambulatoriamente e o seguimento das alterações por procedimentos específicos, como colposcopias, biópsias e excisões do tipo 1 e algumas do tipo 29,10.
Nesse estudo, identificou-se alterações citopatológicas que justificam o encaminhamento para seguimento de cuidados na atenção secundária visando confirmação diagnóstica ou descarte das possíveis alterações pré-cancerosas. As principais alterações citopatológicas detectadas foram as ASC-H e LSIL, ambas com (28,8%). Ao deparar com esse resultado citopatológico, a APS, necessita referenciar as mulheres ao nível secundário para que sejam assistidas pelo especialista em Ginecologia, e consequentemente, serem submetidas à colposcopia e/ou biópsia9,10.
Ressalta-se que as LSIL e as ASC-US representaram 10,6% e 12,5% das alterações citopatológicas encaminhadas. Não havia detalhamento nos prontuários das mulheres com informações de que essas alterações citopatológicas (LSIL e ASC-US), motivos de 23,1% dos encaminhamentos, eram repetições dos exames citopatológicos realizados no nível primário. No entanto, subentende-se que seja esse o critério adotado referenciá-las ao CEAE, atendendo as recomendações para o rastreamento do CCU9.
As diretrizes brasileiras recomendam que a APS ao deparar com esses laudos nos resultados citopalógicos, deve repetir nova coleta citopatológica para confirmação do resultado encontrado anteriormente, a depender da idade da mulher, no período entre seis meses a 36 meses, e encaminhá-las à atenção secundária para realizar colposcopia9,10.
CONCLUSÃO
Predominaram mulheres com média de idade 40,7 anos, escolaridade abaixo ensino médio, que tiveram um a três filhos, não utilizavam preservativos e anticoncepcionais, era não tabagistas e com ASC-H e HSIL (alterações citopatológicas alto grau). As características que apresentaram maiores percentuais para lesões citopatológicas de alto grau foram mulheres com quatro ou mais gestações (multigestas), idade do parto menor ou igual a 18 anos, coitarca menor ou igual a 15 anos e tabagistas.
Os serviços da rede de atenção, especialmente da atenção primária à saúde, devem capacitar permanentemente os profissionais visando o cumprimento de fluxos assistenciais preconizadas pelas recomendações das diretrizes brasileiras de rastreamento da neoplasia cérvico-uterina atentando ao perfil encontrado de mulheres encaminhadas a atenção secundária.
AGRADECIMENTOS:
Agência Financiadora:
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq).
REFERÊNCIAS
1.Bhatla N, Aoki D, Sharma DN, Sankaranarayanan R. Cancer of the cervix uteri: 2021 update. Int. J. Gynecol. Obstet. 2021 [acesso em 2023 jan 03]; 155 (Suppl.1): 28-44. Disponível em: https://doi.org/10.1002/ijgo.13865.
2.International Agency for Research on Cancer (IARC). Cancer today. Lyon: WHO, 2020. Disponível em: http://gco.iarc.fr/today/home.
3.Rodrigues NCP, O’dwyer G, Andrade MKN, Monteiro DLM, Reis IN, Frossard VC, Lino VTS. Mortality by colon, lung, esophagus, prostate, cervix and breast cancers in Brazilian capitals, 2000-2015: a multilevel analysis. Cienc. Saude Colet.. 2022 [acesso em 2023 mar 04]; 3(2): 1157-70. Disponível em: https://doi.org/10.1590/ 141381232022273.47092020.
4.Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Estimativa 2023: incidência do Câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA [online], 2022 [citado: 25 fev 2023]. Disponível em: http://www.gov.br/inca/ptbr/assuntos/cancer/numeros/estima tiva.
5.Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Atlas da Mortalidade. Rio de Janeiro: INCA, 2021 [acesso em 2023 jan 18]. 1 base de dados. Disponível em: https://www.inca.gov.br/app/mortalidade.
6.Wild CP, Weiderpass E, Stewart BW, editors. World Cancer Report: Cancer Research for Cancer Prevention. Lyon, France: International Agency for Research on Cancer (IARC); 2020. Disponível em: https://publications.iarc.fr/586.
7.Guedes DHS, Fiorin BH, Santos MVF, Viana K, Portugal F, Silva RA. Factors associated to the human papillomavirus in women with cervical cancer. Rev Rene. 2020 [acesso em 2023 mar 04]; 21: e43681. Disponível em: https://doi.org/10. 15253/2175-6783.20202143681.
8.Iglesias GA, Larrubia LG, Campos Neto AS, Pacca FC, Iembo T. Conhecimento adesão ao Papanicolau de mulheres de uma rede de Atenção Primária à Saúde. Rev. Ciênc. Med.. 2019 [acesso em 2023 jan 21]; 28(1): 1-30. Disponível em: http://docs.bvsalud.org/biblioref /2020/01/1047801/med-3-00_4008.pdf.
9.Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer José Gomes Alencar da Silva (INCA). Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. 2. Ed. Rev. Atual. Rio de Janeiro: INCA; 2016 [acesso em 2023 jan 06]. 114 p. Disponível em: https://bvsms.Saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/rastreamento_cancer_colo_ute ro.df.
10.Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer José Gomes Alencar da Silva (INCA). Parâmetros técnicos para o rastreamento do câncer do colo do útero . Rio de Janeiro: INCA, 2019 [acesso em 2022 dez 22]. 32 p. Disponível em: https://do cs.bvsalud.org/biblioref/2019/04/988200/parametrostecnicoscolodoutero_2019.Pdf.
11.Lopes VAS, Ribeiro JM. Fatores limitadores e facilitadores para o controle do câncer de colo de útero: uma revisão de literatura. Cien Saude Colet. 2019 [acesso em 2023 mar 04]; 9(24): 3431-42. Disponível em: https://doi.org/10.1590 /141381232018249.32592017.
12.Hochman B, Nahas FX, Oliveira Filho RS, Ferreira LM. Desenhos de pesquisa. Acta Cir. Bras. 2005 [acesso em 2023 jan 25]; 20( suppl): 2-9. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-86502005000800002.
13.Minas Gerais. Secretaria Estadual de Saúde (SES). Resolução nº 4.971, de 21 de outubro de 2015. Regulamenta os Centros Estaduais de Atenção Especializada e seus processos de supervisão e avaliação [Internet]. 2015 [citado 2021 jan 15]: 16 p. Disponível em: https://www.saude.mg.gov.br/images/documentos/resolu%C3%A7% C3%A3o4971pdf.
15.Minas Gerais. Secretaria de Estado de Saúde (SES). Resolução nº 4.972, de 21 de outubro de 2015. Define a forma de financiamento dos Centros Estaduais de Atenção Especializada, a partir da competência de 2016 [Internet]. 2015 [citado2021 jan 15]: 11 p. Disponível em: https://www.saude.mg.gov.br/images/documentos/res olu%C3%A7%C3%A3o4972.pdf.
15.Ayres ARG, Silva GA, Teixeira MTB, Duque KCD, Machado MLSM, Gamarra CJ, Levi JE. Infecção por HPV em mulheres atendidas pela Estratégia Saúde da Família. Rev. Saude Publica, 2017 [acesso em 2023 fev 18]; 51:92. Disponível em: https://doi.org/10.11606 /S1518-8787.2017051000065.
16.Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Brasília, 2012 [acesso em 2022 dez 24]. Disponível em: https://conselho.saude .gov. br/resolucoes/2012/ Reso466.pdf.
17.Favaro CRP, Durant LC, Paterra TSV, Panobianco MS. Perfil epidemiológico de mulheres com câncer de colo de útero tratadas em hospital terciário. Rev. Enferm. Cent-Oeste Min. 2019 [acesso em 2023 mar 09]; 9. Disponível em: http://periodicos. ufsj.edu.br/ recom/article/ view/3253.
18.Conde CR, Lemos TMR, Ferreira MLSM. Características sociodemográficas, individuais e programáticas de mulheres com câncer de colo do útero. Enferm. Glob. 2018 [acesso em 2023 mar 03]; 17(49): 348-58. Disponível em: http://scielo.isciii.es/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S169561412018000100348& lng=pt.
19.Oliveira MM, Andrade SSCA, Oliveira PPV, Silva GA, Silva MMA, Malta DC. Cobertura de exame Papanicolaou em mulheres de 25 a 64 anos, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde e o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico, 2013. Rev. Bras. Epidemiol. [online]. 2018 [acesso em 2023 mar 07]; 21: e180014. Disponível em: https://doi.org /10.1590/1980-549720180014.
20.Kurebayashi JMY, Barbieri M, Gabrielloni MC. Tracking of cellular atypes of the cut of uterus of women in Primary Care. Rev. Bras. Enferm. 2020 [acesso em 2023 mar 03]; 73 (suppl 6): e20190753. Disponível em: https://doi.org/10.15 90/0034-7167-20190753.
21.Bedin R, Gasparin VA, Pitilin EB. Fatores associados às alterações cérvico-uterinas de mulheres atendidas em um município polo do oeste catarinense. R. pesq. Cuid. Fundam. Online. 2017 Jan [acesso em 2023 mar 10]; 9(1):167-74. Disponível em: http://seer. unirio.br/index.php /cuidadofundamental/article/view/5312/pdf.
22.Campos AAL, Neves FS, Duque KCD, Leite ICG, Guerra MR, Teixeira MTB. Fatores associados ao risco de alterações no exame citopatológico do colo do útero. Rev. Enferm. Cent-Oeste Min. 2018 [acesso em 2023 mar 10]; 8 (e2330.): 1-11. Disponível em: http://seer.ufsj.edu. br/index.php/recom/ article/view/2330/1865.
23.Pinto VM, Basso CR, Barros CRS, Gutierrez EB. Fatores associados às infecções sexualmente transmissíveis: inquérito populacional no município de São Paulo, Brasil. Cien. Saude Colet. 2018 [acesso em 2023 mar 11]; 23(7): 2423-32. Disponível em: https://doi. org/10.1590/1413-81232018237.20602016.
24.Tsikis S, Hoefer L, Charnot-Katsikas A, Schneider JA. Human papillomavirus infection by anatomical site among Greek men and women: a systematic review. Eur J. Cancer. Prev. 2016 [acesso em 2023 mar 11]; 25 (6): 558-71. Disponível em: https://journals.lww.com/eurjcancerprev/Abstract/2016/11000/Human_papillomaviru_infection_by_anatomical_ sit e.11.aspx.
25.Nobre CMG, Minasi JM, Barros AM, Carvalho V, Oliveira L, Kerber N. Perfil das mulheres com alteração no exame Papanicolau no Sul do país. VITTALLE [online]. 2016 Set [acesso em 2023 mar 19]; 26(1): 29-36. Disponível em: https://periodicos. furg.br/vittalle/article/view/6057.