PERCEPÇÃO DOS DISCENTES DA GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM SOBRE O FENÔMENO SEGUNDA VÍTIMA

PERCEPÇÃO DOS DISCENTES DA GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM SOBRE O FENÔMENO SEGUNDA VÍTIMA

PERCEPTION OF UNDERGRADUATE NURSING STUDENTS ABOUT THE SECOND VICTIM PHENOMENON

PERCEPCIÓN DE LOS ESTUDIANTES DE ENFERMERÍA SOBRE EL FENÓMENO DE LA SEGUNDA VÍCTIMA

Autores

Millene Pereira Abrantes – Enfermeira pelo Centro Universitário São Camilo. São Paulo (SP), Brasil. ORCID ID: 0009-0000-4428-4189. 

Julia Vargas Ortiz Montanari – Enfermeira pelo Centro Universitário São Camilo. São Paulo (SP), Brasil. ORDCID ID: 0009-0002-3630-5167..

Ana Cláudia Alcântara Garzin – Enfermeira, doutora em Ciências pela EEUSP, docente do curso de graduação em enfermagem no Centro Universitário São Camilo. São Paulo (SP), Brasil. ORCID ID: 0000-00025090-5508.

RESUMO

Objetivo: compreender a percepção dos discentes de enfermagem acerca do fenômeno segunda vítima, bem como reconhecer as diferentes estratégias de enfrentamento deste fenômeno. Método: pesquisa de abordagem qualitativa exploratória, realizada entre outubro e novembro de 2023, com 29 discentes de graduação em enfermagem por meio de entrevistas com questões semi-estruturadas. Resultados: a maioria dos discentes de enfermagem não soube definir o fenômeno de segunda vítima, bem como suas implicações. Muitos ressaltaram que o tema foi pouco abordado durante a graduação e, portanto, a falta de conhecimento dificulta a formulação de estratégias eficazes de enfrentamento do fenômeno. Conclusão: evidenciou-se defasagem no processo ensino-aprendizagem acerca desta temática durante a graduação, que repercute no enfrentamento do fenômeno.

DESCRITORES: Estudantes de enfermagem; Estágio clínico; Segurança do paciente.

ABSTRACT

Objective: to understand nursing students' perceptions of the second victim phenomenon, as well as to recognize the different strategies for coping with this phenomenon. Method: exploratory qualitative research, conducted between October and November 2023, with 29 undergraduate nursing students through interviews with semi-structured questions. Results: most nursing students were unable to define the second victim phenomenon, as well as its implications. Many emphasized that the topic was rarely addressed during their undergraduate studies and, therefore, the lack of knowledge makes it difficult to formulate effective strategies for coping with the phenomenon. Conclusion: there was a gap in the teaching-learning process regarding this topic during undergraduate studies, which has an impact on coping with the phenomenon.

KEYWORDS: Nursing students; Clinical internship; Patient safety.

RESUMEN

Objetivo: comprender la percepción de los estudiantes de enfermería sobre el fenómeno de la segunda víctima, así como reconocer las diferentes estrategias para el afrontamiento de este fenómeno. Método: investigación cualitativa exploratoria, realizada entre octubre y noviembre de 2023, con 29 estudiantes de pregrado en enfermería a través de entrevistas con preguntas semiestructuradas. Resultados: la mayoría de los estudiantes de enfermería no supo definir el fenómeno de la segunda víctima, así como sus implicaciones. Muchos destacaron que el tema fue poco discutido durante la graduación y, por lo tanto, la falta de conocimiento dificulta la formulación de estrategias efectivas para combatir el fenómeno. Conclusión: hubo un rezago en el proceso de enseñanza-aprendizaje respecto a este tema durante la graduación, lo que repercute en el afrontamiento del fenómeno.

DESCRIPTORES: Estudiantes de Enfermería; Pasantía clínica; Seguridad del paciente.

Recebido: 03/10/2024 Aprovado: 11/11/2024

Tipo de artigo: Artigo Original

INTRODUÇÃO

O termo segunda vítima é utilizado para se referir ao profissional de saúde que vivencia algum dano emocional ou sofrimento em função do envolvimento a um erro com dano ao paciente. Esse trauma pode ser causado pela própria consciência do profissional ou pela equipe, familiares da vítima e liderança, que veem a situação de forma acusatória, julgando o profissional como incompetente, negligente e antiético1.

Nesse sentido, sentimentos como vergonha, medo, raiva, insegurança e ansiedade são frequentes entre profissionais que se tornaram segunda vítima. Tais emoções repercutem negativamente e impactam na qualidade de vida, assim, é possível observar menor autoestima, dificuldade para dormir, aumento no uso de álcool e drogas e pensamentos suicidas que podem evoluir para o suicídio2.

Por conseguinte, a falta de apoio das instituições e dos colegas de trabalho podem diminuir ou potencializar as repercussões, culminando em estresse emocional, solicitação de transferência de setor e até mesmo abandono da profissão. Por outro lado, quando há o suporte adequado ao profissional na condição de segunda vítima o impacto é atenuado, evitando deixar uma marca permanente na vida do indivíduo3.

Com a expansão do entendimento do conceito de segunda vítima, o discente de enfermagem também pode se ver nessa posição quando inserido em um contexto de assistência à saúde supervisionada. A ansiedade e insegurança se assomam com a pressão, pois há a visão de que os bons profissionais são os que não erram, reforçando uma cultura punitiva4.

Em uma situação de evento adverso, os discentes vivenciam altos níveis de estresse, com manifestações psicológicas, físicas e psicossociais, dentre as quais: descontentamento com a profissão, incerteza sobre o futuro profissional, transtornos de humor, utilização de medicamentos e evasão do curso4.

Um estudo prospectivo e descritivo avaliou a extensão e os tipos de erros e quase erros na prática de 204 discentes de enfermagem de 43 estados norte-americanos, durante o período de três anos. Ao todo, houve o total de 1042 erros e quase erros, sendo que os erros de medicação representaram 58,8% e envolveram, principalmente, dose errada, preparação incorreta, via errada, erro de diluição e medicamento errado. Ainda, o estudo aponta que 10,8% dos erros cometidos no ambiente clínico trouxeram dano ao paciente2.

Portanto, convém compreender se os discentes do curso de graduação em enfermagem conhecem o termo segunda vítima, visto que é necessário sensibilizá-los para esse assunto desde a formação. Além disso, é importante compreender se esses já experenciaram esse fenômeno, uma vez que serão futuros profissionais que podem adentrar o mercado de trabalho com consequências negativas a depender de como foi o seu acolhimento. 

Assim, este estudo objetiva compreender a percepção dos discentes de enfermagem acerca do fenômeno segunda vítima, bem como reconhecer as diferentes estratégias de enfrentamento deste fenômeno por estes.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, de caráter exploratório, realizada em dois campi de uma Instituição de Ensino Superior privada do município de São Paulo, realizada entre outubro e novembro de 2023, cujo desenvolvimento seguiu as etapas indicadas pelo instrumento Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ)5.

Participaram do estudo discentes da graduação de enfermagem regularmente matriculados, cursando o décimo semestre durante o período de coleta de dados. Foram excluídos os discentes que estavam afastados por razões médicas durante esse período ou aqueles que, por algum motivo, apesar de matriculados no último semestre não estavam cursando o estágio supervisionado.

Após a anuência do Comitê de Ética em Pesquisa (Parecer nº 6.297.443; CAAE 72834720.1.0000.0062), os participantes foram esclarecidos quanto aos objetivos, o direito ao anonimato e à liberdade para aceitar participar do estudo, sem coação, somente participando da entrevista se fosse de sua livre e espontânea vontade, a partir da concordância com o Temo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A coleta de dados ocorreu por meio de entrevista com roteiro de perguntas semiestruturadas, via Microsoft Teams. Foi realizada a coleta de dados sociodemográficos e, após, dado seguimento com o questionário, que foi composto por questões abertas. O questionário inicialmente abordou o que o estudante entendia pelo termo segunda vítima na assistência à saúde, apresentando o conceito após sua resposta. Em seguida, foi dado ênfase à vivência desse fenômeno pelo discente, explorando os sentimentos despertados. 

Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, a coleta de dados ocorreu até que o fenômeno estudado foi revelado e os objetivos propostos no estudo foram alcançados, ocorrendo a saturação de dados. As entrevistas tiveram aproximadamente 10 minutos e totalizou 29 participantes. Ao fim da coleta de dados as entrevistas gravadas foram transcritas, transcriadas, textualizadas, com retorno e validação do texto final pelos participantes. 

Para análise de conteúdo, de acordo com o referencial metodológico de Laurence Bardin, seguiu-se as etapas de leitura flutuante, exploração do material e extração de seus significados que foram organizados em quatro categorias temáticas. As falas dos participantes foram identificadas por intermédio da letra E, além da numeração sequencial de acordo com a ordem de realização das entrevistas (E1, E2...).

RESULTADOS

Participaram do estudo 29 discentes de enfermagem que estavam cursando o 10º semestre. Apenas um era do gênero masculino. A idade variou de 21 a 38 anos, concentrando-se na faixa etária de 20 a 25 anos, sendo a maioria do período matutino. Grande parte fizeram estágio extracurricular durante a graduação e somente três afirmaram ter formação e experiência prévia como técnicas de enfermagem, conforme Tabela 1.

Tabela 1 – Perfil dos participantes da pesquisa

Variáveis

participantes

n

%

Idade

 

 

20-25

22

76%

26-30

5

17%

>30

2

7%

Gênero

 

 

Feminino

28

97%

Masculino

1

3%

Período

 

 

Matutino

22

76%

Noturno

7

24%

Estágio extracurricular

 

Sim

19

66%

Não

10

34%

Experiência profissional

 

Sim

3

10%

Não

26

90%

Total

29

100%

 

A partir da análise de conteúdo, emergiram quatro categorias temáticas: (1) percepção dos discentes sobre o fenômeno segunda vítima; (2) defasagem no processo de ensino-aprendizagem acerca do termo segunda vítima; (3) sentimentos do discente relacionado ao fenômeno segunda vítima; e (4) conduta e acolhimento em casos de segunda vítima. 

Categoria 1: Percepção dos discentes sobre o fenômeno segunda vítima

Esta categoria evidenciou a percepção dos discentes sobre o fenômeno segunda vítima. A maioria dos entrevistados não soube referir o que é o termo, bem como suas implicações. Alguns foram capazes de definir parcialmente o conceito, abordando a presença do profissional que está envolvido em algum erro, porém sem detalhamento.

Não sei o que é segunda vítima. (E3, E5, E6, E7, E8, E9, E12, E14, E17,E19, E22, E24, E25, E26, E28)

Creio eu que o termo segunda vítima na assistência à saúde se refira a quando acontece alguma coisa com o profissional (E2).

Os discentes que definiram de forma assertiva o termo entendem também que há uma cultura punitiva, especialmente dentro das culturas organizacionais dos hospitais, que resultam em falta de apoio.

Eu entendo que segunda vítima na assistência à saúde é um colaborador de saúde que cometeu algum erro que teve dano ao paciente, que recebe punições e críticas, tendo também efeitos adversos que recaem sobre ele, e que ele acaba sendo uma vítima por isso também, né? Ele perde o emprego, essas coisas… (E1)

Segunda vítima é quando a pessoa faz o ocorrido mas não é a culpada daquilo, acaba sendo uma vítima indireta por não ser a única culpada do que aconteceu. (E18)

Categoria 2: Defasagem no processo de ensino-aprendizagem acerca do termo segunda vítima

A presente categoria avalia a consistência do processo de ensino-aprendizagem acerca do termo segunda vítima. A maioria dos discentes relatou que esse assunto foi abordado durante a graduação e as metodologias de ensino mais citadas foram, respectivamente, aula expositiva, estudo de caso e discussão. Porém, mesmo dentre os que lembraram, foi ressaltado por muitos que o tema foi pouco abordado, demonstrando uma defasagem no ensino-aprendizado acerca do termo segunda vítima durante a graduação.

O assunto foi abordado em aula, mas sem uma matéria específica que fosse sobre o tema. (E17)

O assunto foi abordado em algum momento durante a minha graduação, mas bem pincelado. (E4)

Esse assunto foi abordado durante a minha graduação, mas bem brevemente, na verdade. (E5)

Por fim, há ainda um número expressivo de entrevistados que relataram que o assunto não foi abordado. 

Na verdade nunca ouvi falar disso na graduação, não tivemos uma matéria sobre. (E21)

Categoria 3: Sentimentos do discente relacionado ao fenômeno segunda vítima

Esta categoria apresenta os sentimentos referenciados pelos discentes de enfermagem que já presenciaram ou vivenciaram um evento adverso ou near miss. Dentre os entrevistados, a maioria referiu já ter presenciado a ocorrência de um evento adverso, incluindo o near miss. Entre os que experienciaram o fenômeno enquanto segunda vítima, surgiram os sentimentos de medo, insegurança e culpa. Foram elencados ainda sentimentos de vulnerabilidade devido ao envolvimento com um erro ou quase erro. 

Quando cometi esse erro, eu me senti, assim, incompetente, né... foi uma desatenção minha, realmente, mas sabe quando a gente acha que vai ser melhor do que isso? Quando a gente pensa “nossa, que erro idiota, né?  Eu devia ter prestado mais atenção...”. A gente nunca quer causar um dano, cometer um erro... a gente fica se sentindo mal, né. (E1)

Eu me senti muito vulnerável após essa situação, né? (...) E eu me vi ali, naquela situação, sem saber o que fazer. (E13)

Despertou em mim o sentimento de ter que prestar muita atenção, até porque qualquer desatenção pode gerar um dano grave. E insegurança também. (E27)

Foi pontuado em uma das entrevistas que mesmo com o conhecimento acerca do potencial risco de erro humano no cuidado em saúde e da cadeia de erros provenientes de um sistema inseguro para ambos profissionais e pacientes, sentimentos como culpa e vulnerabilidade permanecem frente à situações de exposição à incidentes de segurança. 

Eu me senti errada, ainda que eu fizesse parte do processo, ainda que não tenha sido diretamente algo que eu cometi. Porque eu entendo o erro, principalmente na assistência, como aquela coisa do queijo suíço, né? Das barreiras... então houve falhas ali que ultrapassaram as barreiras do queijo: a enfermeira que fez o procedimento sem comunicar, o médico que não orientou apenas uma pessoa específica pra aquele cuidado… Eu me senti culpada, me senti vulnerável, me senti... sabe? Foi difícil. (E13)

Na Figura 1, são apresentados os sentimentos de discentes quando questionados sobre evento adverso ou near miss em formato de nuvem de palavras, isto é, as palavras mais repetidas ficam maiores, fazendo um comparativo entre os sentimentos evidenciados. 

Figura 1 – Nuvem de palavras de sentimentos que emergiram nas falas dos participantes relacionados ao fenômeno segunda vítima

Categoria 4: Conduta e acolhimento em casos de segunda vítima

Essa categoria evidencia o apoio que os discentes de enfermagem relataram ter recebido após o envolvimento com incidentes de segurança do paciente. Parte deles relatou ter sido bem acolhido pelo professor, que os orientaram e apresentaram uma postura empática.

Conversei com a minha preceptora do estágio supervisionado sobre o que quase aconteceu e senti que ela foi bem acolhedora. Ela me falou “tem que prestar mais atenção, tem que conferir não só o nome completo, mas passar a conferir a data de nascimento também porque pode acontecer isso”. Mas foi isso, me senti acolhida. (E11)

Tive o suporte da preceptora de dizer “Não, não é culpa sua, houve erro de outra pessoa” (...) A preceptora foi muito acolhedora (...), veio e me disse: ó, essa culpa não é sua, isso aconteceu por tal tal coisa, não sinta que é diretamente com você. (E13)

No entanto, outros participantes referiram não ter se sentido acolhida, pois as orientações recebidas foram em tom de crítica e julgamento. 

Me deram mais uma orientação, mas uma orientação meio que em tom de crítica mesmo, falando “ah, imagina se você tivesse feito isso com uma morfina... o que ia acontecer com o paciente?” (E1)

A UBS não fez nada, mas a professora conversou com a gente, discutimos sobre. Não me senti acolhida, ela tratou como apenas uma desatenção no sentido de “está vendo? Vocês não podem fazer isso”. (E27)

Uma das falas demonstrou, ainda, como a abordagem dos professores durante o estágio, frente à eventos adversos, pode impactar o bem-estar do estudante, mitigando impactos negativos.

É... é complicado... eu fiquei bem chateada, eu acho que poderiam ter sido um pouco mais... compreensivos. Eu sei que é perigoso mesmo, imagina se fosse uma morfina, né... mas eu acho que eles podiam pelo menos ter sido um pouco mais gentis (...). (E1)

Alguns participantes referiram, ainda, que embora tenham sido abertas notificações sobre o caso, não obtiveram nenhum tipo de retorno ou feedback.

Como a gente só notifica, a gente não sabe o que acontece, então não sei quais foram as condutas da instituição diante do erro, porque não chegou uma resposta ainda. (E6)

Com relação às condutas que foram tomadas pela instituição, eu não sei. Ninguém fala sobre isso... (E9)

DISCUSSÃO

Os discentes de enfermagem entrevistados, em sua maioria, não souberam definir o termo segunda vítima, bem como suas implicações. Tal achado vai ao encontro de um estudo realizado com 138 enfermeiros recém-formados já inseridos no mercado de trabalho ou em residências profissionais, que evidenciou que 54,3% desconheciam o termo segunda vítima e que 57% conceituam eventos adversos de forma insatisfatória6.

É possível que a falta de conhecimento impacte diretamente em se reconhecer enquanto vítima, evidenciando a necessidade de uma maior abordagem sobre o tema durante a formação acadêmica.

Nesse sentido, uma pesquisa analisou o currículo do curso de medicina e enfermagem de 88 universidades em 29 países europeus e apontou a deficiência no ensino de gestão e gerenciamento de riscos, especialmente do fenômeno de segunda vítima, que apareceu como tema previsto em apenas uma das 42 universidades7.

A ausência da abordagem dessa temática se contrapõe ao Plano de Ação Global da Organização Mundial da Saúde para a Segurança do Paciente 2021-2030, que recomenda a inclusão da segurança do paciente nos currículos universitários o mais precocemente possível, contribuindo para a integralidade da formação e o desenvolvimento do futuro profissional7.

Os currículos atuais pouco colaboram com a formação dos profissionais para lidar com falhas, fortalecendo a cultura da sociedade que acredita que bons profissionais são aqueles que nunca erram. Essa visão contribui para um afastamento do entendimento do processo que culminou em um evento adverso, transferindo a responsabilidade pelo incidente apenas para o profissional, sob a justificativa de atos inseguros individuais, como esquecimentos e desatenção, gerando sentimentos de culpa, raiva e frustração8,4.

Um estudo feito com 32 hospitais holandeses elencou outros 11 sintomas auto relatados por profissionais de saúde envolvidos em incidentes de segurança do paciente, sendo o mais prevalente a hipervigilância, seguida por flashbacks, vergonha, dúvidas sobre o conhecimento e habilidade, estresse e medo9, sentimentos negativos que influenciam diretamente no bem-estar do profissional e sua aptidão para o trabalho10, o que corrobora as evidências desta pesquisa, visto que foram os mesmos sentimentos elencados pelos entrevistados.

Um dos erros mais comuns, especialmente entre discentes e recém-formados, é o erro relacionado à medicação. E, contrário à crença popular que resume o erro somente à fatores pessoais dos profissionais, as principais causas pontuadas são a sobrecarga de trabalho, prescrições ilegíveis, aprazamento incorreto, inexperiência no processo de preparo e administração de medicamentos e escassez de recursos6.

Entre os discentes, e até mesmo entre professores, pode-se pontuar como fatores importantes na ocorrência de erros a falta de familiaridade com a segurança do paciente, comunicação inadequada, ausência de protocolos e de padronizações, falta de trabalho em equipe, desconfiança dos profissionais em relação aos estudantes, relutância de abordagem de temas não incluídos previamente nas estruturas curriculares, rigidez na coordenação para implementação de novos eixos temáticos de segurança do paciente e falta de interesse pelo tema7,11.

Portanto, para a efetiva inserção da segurança do paciente durante a construção do conhecimento acadêmico e da identidade profissional, é necessária a sensibilização e a capacitação dos docentes, de modo que valorizem e integrem essa temática nas unidades curriculares sob sua responsabilidade12. A cultura punitiva organizacional ainda prevalece e, desse modo, os estudantes sentem-se receosos em falar sobre os erros pela maneira que podem ser recebidos pelo seu professor. 

A relação de confiança desenvolvida pelo professor e discente é fundamental pois permite um canal de comunicação aberto, essencial para que o discente fale abertamente sobre seu erro. É necessário que o professor esteja preparado para lidar com incidentes de segurança do paciente, pois é um agente condutor e a postura que adota diante de tais circunstâncias pode contribuir para amenizar as consequências traumáticas do fenômeno segunda vítima11.

Portanto, é imprescindível que a instituição de ensino capacite adequadamente o professor para lidar com essas situações, fomentando a cultura justa. Os educadores devem trabalhar as causas dos incidentes por meio das vulnerabilidades do sistema, auxiliando seus alunos a compreenderem a complexidade dos incidentes ao invés de culpá-los4,8.

Assim, a abordagem e o acolhimento dos professores pode ser fundamental e determinante para o bem-estar físico e mental do discente que é segunda vítima, podendo amenizar consequências negativas. Um estudo belga realizado com 844 estudantes de enfermagem evidenciou que 38,4% estiveram envolvidos em incidentes de segurança do paciente e que 84,7% destes apresentaram sintomas do fenômeno segunda vítima. Tais estudantes identificaram que o apoio recebido por professores e pela equipe foi mais importante do que conversar com amigos e família, o que corrobora os resultados deste estudo11.

A falta da abordagem da segurança do paciente na formação reverbera na atuação profissional e, em última instância, no paciente. Um estudo realizado em unidades cirúrgicas e em centros cirúrgicos de um hospital localizado no sul do Brasil indicou que 63,9% dos participantes não se sentiam confortáveis em discutir erros assistenciais com seus superiores. Se faz necessário transformar a cultura das organizações, de forma a compartilhar as responsabilidades,10.

Neste estudo, foi relatado que, embora tenham sido abertas notificações sobre os erros, não houve nenhum retorno posterior, o que demonstra uma cultura de segurança ainda imatura. A cultura de aprendizagem é essencial, pois identifica lacunas inerentes aos processos e apresenta melhorias com o intuito de prevenir o erro10.

Um estudo com 138 enfermeiros recém-formados indicou que 26,8% deles já estiveram envolvidos em eventos adversos, dentre os quais 73% relataram que receberam apoio após o incidente, entretanto, 21,6% relataram ter recebido punição, como advertências verbais e escritas e até demissão6.

Diante disso, o desenvolvimento de programas de apoio à segunda vítima é imprescindível e possui o objetivo de ofertar suporte emocional, auxiliando-os a compreender o que ocorreu e oferecendo subsídios para que continuem a prestar um cuidado de qualidade10. Esses programas desempenham um papel essencial no amadurecimento da cultura de segurança do paciente, contribuindo para a redução de estigmas e preconceitos para com profissionais envolvidos em incidentes13.

Na ausência de apoio institucional, existe o risco de agravo do impacto emocional nos profissionais que vivenciam o fenômeno segunda vítima, aumento na duração dos sentimentos negativos, dos índices de absenteísmo e de solicitação de transferência de área, bem como da ocorrência de erros6.

Assim, embora concorde-se que não se trata de negar a responsabilidade dos profissionais, espera-se que as organizações de saúde desenvolvam fluxos consolidados de apoio emocional às segundas vítimas, com abordagem de não culpabilização, escuta ativa e encorajamento, além de analisarem os eventos adversos com a finalidade de promover melhorias nos processos assistenciais.

CONCLUSÃO

Os resultados revelaram que a maioria dos discentes de enfermagem não soube definir o fenômeno de segunda vítima, bem como suas implicações. Muitos ressaltaram que o tema foi pouco abordado durante a graduação e com pouco detalhamento, o que demonstrou a defasagem no processo ensino-aprendizagem acerca desta temática durante a graduação.

Observou-se que a falta de conhecimento e as lacunas de abordagem durante a graduação impediram a formulação de estratégias enfrentamento eficazes. Entre aqueles que tinham conhecimento prévio do assunto ou que já haviam passado por situações de eventos adversos, a comunicação e o acolhimento do preceptor, equipe e colegas emergiram como estratégias positivas que favoreceram o enfrentamento.

Ademais, constatou-se que o conhecimento aprofundado sobre o tema, incluindo a compreensão de que os erros decorrem de um sistema complexo e multifatorial de falhas, possibilita uma maior capacidade de enfrentamento das situações de segunda vítima. Esse entendimento contribui para aliviar o peso da culpa e da responsabilização exclusiva sobre o evento.

Como o tema ainda é pouco abordado, há uma baixa disponibilidade de literatura sobre o mesmo, evidenciando uma escassez de artigos, principalmente no cenário nacional, sendo, portanto, a principal limitação do presente trabalho.  Dessa forma, urge a necessidade de ampliar o debate e as pesquisas sobre esse tema, integrando essa temática nos currículos de graduação. 

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